segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Fábricas Recuperadas pelos Trabalhadores – Dilemas da relação entre engenheiros e operários

Por Flávio Chedid


Aos companheiros que estão militando na organização do ENEDS, que suponho estarem de alguma forma inquietos com a formaçao da engenharia tal qual como ocorre atualmente, buscarei nesse texto apresentar o conceito de Fábricas Recuperadas e problematizar a relação entre tais empreendimentos e os profissionais de engenharia. Com isso, procuro dar continuidade aos textos anteriores, seja questionando a racionalidade instrumental, seja relacionando a formaçao do engenheiro à construção de políticas públicas, ou ainda, refutando a ideia de neutralidade da técnica.

No Brasil, embora encontremos práticas desde a década de 1980, ainda não há um conceito consolidado que defina os empreendimentos que faliram e que foram recuperados pelos trabalhadores que buscam organizá-las sob a forma autogestionária. Alguns conceitos distintos foram utilizados pelos pesquisadores que se dedicaram ao tema: empreendimentos autogestionários provenientes de massa falida, empresas de autogestão, empresas recuperadas, fábricas recuperadas.

Temos[1] optado pela utilização do conceito de Fábricas Recuperadas pela precisão do conceito e pela  carga política que está subjacente ao conceito de fábrica.

Acredito que com o que disse acima já podem ter uma breve ideia do que sejam as Fábricas Recuperadas e que algumas questões já tenham surgido para vocês: quem continua na fábrica recuperada? Se são somente os operários como conseguem gerí-las? Elas são viáveis a longo prazo? O que de diferente há nessas fábricas com relação às tradicionais? Como a engenharia poderia ajudá-las a se fortalecer?

Bom, posso ter forçado um pouco a barra ao imaginar que formularam tantas questões nessa breve leitura, mas foi a maneira que encontrei de apresentá-las e tentar esboçar algumas respostas, sendo a maioria imprecisas e em forma de novas questões.

Na maioria dos casos, quem continua nas fábricas recuperadas são os trabalhadores do chão de fábrica, sobretudo pela maior dificuldade que têm de encontrar outros empregos em períodos de crise[2]. É verdade que estes encontram dificuldades para gerir os empreendimentos, especialmente no início em que contam com inúmeros problemas deixados pelos patroes anteriores, como dívidas e o nome sujo no mercado. Mas também é verdade que ao longo do tempo muitos desses trabalhadores desmitificaram muitas coisas com relação ao processo de gestão e já estão nessa luta há quase duas décadas. Muitas fábricas que numa análise rápida de um engenheiro seria definida como inviável economicamente funcionam há cerca de 15 anos e permitem o sustento de milhares de trabalhadores. Qual seria o milagre operado pelos operários?

Em primeiro lugar, funcionam sobre outra lógica. Não quero aqui apresentar uma imagem idealizada e dizer que a racionalidade instrumental, definida pelo Roy, não existe nessas fábricas. Sim, existe. Tampouco se trata de uma vanguarda revolucionária que muitos de nós esperamos encontrar. Entretanto, a forma na qual estão organizados gera mudanças concretas. Não há uma pessoa detentora de todo capital. Não é possível, portanto, vender toda a fábrica, investir no mercado e permitir que todos vivam de renda. Esse cálculo, muitas vezes feito pelo engenheiro tradicional quando analisa viabilidade econômica, não serve de nada para esses empreendimentos. A propriedade coletiva questiona a ideia e as técnicas de análise de viabilidade econômica que conhecemos. Porque também não pode considerar a capacidade de resistência que têm esses trabalhadores em períodos de crise. Na crise mundial de 2008, na Argentina[3] foram muito poucas as fábricas recuperadas que faliram. Na verdade, a crise permitiu o surgimento de muitas outras.

Seguindo na tentativa de responder às questões acima colocadas, me parece sempre muito curiosos os questionamentos sobre a possibilidade de sobrevivência de longo prazo destes empreendimentos. Como bem colocado pelo Roy, citando o Sennet, vivemos no sistema do curto prazo. Capitaneados por pessoas que não pensam em nada além do curto prazo. Mas, que quando se trata de questões de seus interesses, parece bastante oportuno formular questões sobre o longo prazo. Não há resposta para esse questionamento. A maioria dessas experiências já dura muito mais do que qualquer um poderia imaginar e já possui uma importância grandiosa para quem sonha com outra forma de organizar a produção. São experiências vivas das utopias que temos, com todas as contradições a que estão passíveis qualquer experimento humano. A idealização que muitos de nós fazemos delas não só se trata de uma imprecisão teórica como não as ajudam muito.

Estou há cerca de três meses em Buenos Aires para conhecer as experiências argentinas e minha questão é justamente uma das que coloquei acima. Uma questão bastante simples e que dependendo do método e perspectiva teórica adotados nos trará respostas distintas. Eu buscava a princípio encontrar as mudanças na organização da produção. Coitado de mim que buscava fazer isso com breves perguntas de um roteiro semi-estruturado de entrevistas. Assim como uma mãe dificilmente percebe o crescimento de seu filho, estes trabalhadores não possuem as respostas prontas sobre as mudanças que empreenderam. 

Apesar da autocrítica, poderia citar uma série de questões que me saltaram aos olhos desde que estou aqui, como: retiradas igualitárias ou redução significativa das diferenças salariais; novos espaços para tomadas de decisão, que apesar de ser apenas um passo, por não significar necessariamente a efetiva tomada de decisão coletiva, não deixa de ser um passo; controle do ritmo de trabalho pelos trabalhadores, que reduz significativamente acidentes graves de trabalho; novas relações entre os trabalhadores, que já não possuem mais o medo de serem substituídos pelo seu companheiro; relacionamento com lutas políticas que estão para além do seu umbigo; abertura das fábricas para a comunidade do entorno, com organização de visitas, eventos culturais, escolas, centros de saúde; debates sobre questões de gênero entre muios outros pontos encontrados, que não  é possível listar aqui.

É verdade que muitos dessas questões acontecem em fábricas específicas, que poderiam ser consideradas como pontos fora da curva. Não busco aqui generalizar as características das Fábricas Recuperadas, mas apenas de relatar o que é possível encontrar nesses ambientes de trabalho. Aliás, o ambiente de trabalho definitivamente muda. É muito comum encontrar fábricas em que as pessoas escutam músicas, param para tomar mate (mais comum pela Argentina do que parar para fumar) e que fazem do ambiente fabril um ambiente muito mais próximo da sua casa do que nas fábricas tradicionais.

E, enfim, o que tudo isso tem a ver com o ENEDS? Seguindo com a última pergunta acima colocada, creio que a aproximação dos profissionais de engenharia desses empreendimentos é bastante oportuna e, ao mesmo tempo, perigosa. Embora tenham conseguido levar adiante suas fábricas, os trabalhadores ainda lidam om inúmeros problemas tecnológicos que poderiam ser atenuados com a aproximação de engenheiros. Muitos dependem mesmo é de políticas públicas que lhes permitam ter acesso a crédito para renovar o parque fabril, em geral, muito antigo. Mas, sim, também há uma forte demanda pela presença por profissionais da área tecnológica. A questão é que não temos[4] ainda a formaçao para trabalhar com esses empreendimentos.
Em primeiro lugar, aprendemos a ser consultores, cuja metodologia nos ensina a lidar com os donos das empresas, que têm totais condições de impor soluções indesejadas pelo coletivo de trabalhadores. Essa possibilidade não existe no caso das Fábricas Recuperadas. Costumo dizer que precisamos aprender a ser assessores, que considera o saber presente na fábrica e que busca somar  o seu conhecimento, buscando um diálogo de saberes para resolver problemas de gestão administrativa, organização da produção, planejamento das instalações etc.

Se de fato é um desejo dos engenheiros que se aproximam das fábricas recuperadas, ajudá-los a crescer como empreendimento, mesmo se formos considerar situações em que “têm razão”, definitivamente não é eficiente agir como dono da razão. Aliás, eu a coloquei entre aspas, porque na verdade acredito que o que acontece é uma desqualificação de outros tipos de racionalidades. O engenheiro, que possui uma racionalidade específica, tende a sobrepô-la a distintas formas de enxergar o mundo.

Eivados da racionalidade instrumental, citada pelo Roy, não conseguem entender como um trabalhador do setor administrativo se nega a usar o computador. Não entendem porque nas Fábricas Recuperadas quase nunca se utiliza os equipamentos de segurança.

Se de fato é um desejo aproximar-se desses empreendimentos, será necessário aos engenheiros, romper com muitos paradigmas que ainda não se depararam. Talvez o desafio tecnológico seja ainda maior nesses casos. Por exemplo, considerar que no ambiente de trabalho em que o mais importante agora é poder conversar com seu companheiro e escutar música, não há nada que faça um operário tampar o seu ouvido. Nesse caso, por que não pensarmos em máquinas que não produzam ou produzam pouco ruído?[5]

O novo mundo possível certamente não prescindirá de novos engenheiros.


[1]   Uma equipe que conta com pessoas de 9 universidades brasileiras que está se organizando para realizar um levantamento das fábricas recuperadas no Brasil com financiamento do CNPq
[2]   A maior parte dos casos brasileiros de Fábricas Recuperadas surge com a crise da década de 1990 por conta da abertura comercial do país para o exterior.
[3]   País com maior número de Fábricas Recuperadas atualmente (cerca de 230) e com um forte apoio popular ao tema.
[4]   Aí me incluo por também ser (de)formado em engenharia.
[5]   Essa foi uma questão colocada por um trabalhador de fábrica recuperada.

Um comentário:

  1. Legal esta reflexão... sou trabalhador da Flaskô, uma fábrica ocupada em Sumaré/SP, e seria legal entrarmos em contato para que vcs nos conheçam melhor... www.fabricasocupadas.org.br e www.memoriaoperaria.org.br
    Um abraço, Alexandre

    ResponderExcluir