sexta-feira, 24 de junho de 2011

Colunista da Semana




Roy Frankel



Engenheiro de produção formado pela UFRJ e estudante de Letras Português-Francês na UERJ. Atua atualmente como colaborador voluntário do Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ) e trabalha na Gerência de Inclusão Social (Área de Planejamento) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)








O Engenheiro Racional

"A atitude crítica é a predisposição sadia para a assimilação. Criticar não é rejeitar. É escolher o melhor, o mais condizente. É abrir o apetite para uma assimilação saudável de conhecimentos, verdades, valores, que se aceitam, que se desejam, que são percebidos como plenificantes da pessoa. Para essa assimilação enriquecedora, faz-se mister que se criem condições favoráveis." (Libânio, 2002, p. 124)

O presente texto contém algumas ideias retiradas do Projeto de Graduação feito por Rafael Carneiro e por mim. Ele buscava refletir sobre o que é engenharia de produção, se ela estaria afastada ou não da sociedade e, em seguida, como torná-la ainda mais próxima da mesma. Buscarei aqui apresentar apenas um dos recortes teóricos presentes neste trabalho que se aplica à engenharia de modo geral, a saber: a reflexão sobre racionalidade substantiva e racionalidade instrumental, fundamentada principalmente em Guerreiro Ramos e Sennet.

Ramos (1981) caracteriza as organizações econômicas atuais como usuárias da racionalidade instrumental e como exercício intelectual e projeto de sociedade busca mostrar as diferenças deste tipo de racionalidade com uma racionalidade que ele denominou como substantiva devido ao escamoteamento progressivo que vem acontecendo ao conceito de razão.

Classicamente, o conceito de racionalidade sempre se revestira de nuanças éticas, "e chamar um homem ou uma sociedade de racional significava reconhecer sua fidelidade a um padrão objetivo de valores postos acima de quaisquer imperativos econômicos" (Ramos, 1981, p. 122). A esse conceito de racionalidade Ramos dá o nome de substantiva. Por outro lado, na sociedade moderna, o conceito de racionalidade foi despojado de toda sorte de considerações éticas, passando a ser usuária de cálculo de benefícios egoístas, imediatismo, utilitarismo e instrumentalismo.

Ramos (1981) afirma que tal processo não ocorre por acaso, e que a transmutação do sentido de palavras como razão, racionalidade e lazer refere-se ao "processo da consolidação institucional do sistema de mercado [que] é inseparável de um processo de desculturação da mentalidade ocidental, por meio do qual é eliminado o sentido original dessas palavras.” (p. 132) Ao contrário do que se poderia pensar inicialmente, tal transmutação não é puramente relacionada à evolução das línguas e ao processo semântico inerente a tal evolução, mas sim a uma indução propositada das forças presentes no sistema econômico vigente.

A lógica serialista de tempo existente em nossa sociedade (Sennett, 2007) e a constante criação de necessidades socialmente induzidas oriunda da racionalidade instrumental (Ramos, 1981) fazem com que entremos em uma lógica cíclica e contínua de trabalhar cada vez mais para suprir novas necessidades cada vez maiores.

A hegemonia da racionalidade instrumental colabora com a fragilização da fidelidade a padrões éticos presente em nossa sociedade. O ser humano é reduzido a uma criatura que calcula vantagens e desvantagens, sendo a ele impossível deste modo distinguir vício e virtude. "A sociedade torna-se, então, o seu único mentor e, não surpreendentemente, padecimento é equiparado ao mal, e o prazer ao bem.” (Ramos, 1981, p. 30) À maximização do benefício pessoal limites muito tênues e flexíveis existem - a competição torna-se natural, e nela sempre alguém ganha e muitos perdem. Esse jogo é visto como normal e atemporal. A ele que devemos nos submeter. Entretanto, as subjetividades de cada indivíduo por princípio não podem competir entre si e por esse motivo tal submissão implica em uma remoção das mesmas. O próprio indivíduo é visto como uma máquina, um ser sem subjetividade, racional - no sentido instrumental.

Nesse processo de racionalização instrumental do indivíduo, Ramos (1981) menciona o surgimento de diversos problemas psicosociológicos, caracterizados em conjunto como síndrome comportamentalista. “A síndrome comportamentalista, isto é, a ofuscação do senso pessoal de critérios adequados de modo geral à conduta humana, tornou-se uma característica básica das sociedades industriais contemporâneas.” (p. 52) Essa síndrome possui quatro traços principais: a fluidez da individualidade, o perspectivismo, o formalismo, e operacionalismo.

Sennet (2007) explicita como a sociedade capitalista moderna literalmente corrói o caráter dos indivíduos. “O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. (...) Caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem.” (p. 10) Entretanto, o primeiro paradoxo advém de como poderemos buscar metas de longo prazo em uma economia dedicada ao curto prazo? Sennet (2007, p. 21) defende que “as qualidades do bom trabalho não são as mesmas do bom caráter”. Entretanto, na sociedade moderna, tais comparações são feitas sem maiores preocupações. Os bons padrões para o trabalho, repletos de uma racionalidade instrumental, são transportados para a vida pessoal, transformando-a em uma extensão mecanomórfica da realidade empresarial.

Diversas dessas qualidades do bom trabalho capitalista que são prejudiciais ao caráter humano são citadas. Por exemplo, o mote moderno “‘não há longo prazo’ é um princípio que corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo” (Sennet, 2007, p . 24). “A rotina industrial ameaça degradar o caráter humano em suas próprias profundezas” (p. 41) Adam Smith, em a Riqueza das Nações, incrivelmente, corrobora com essa opinião, afirmando que “O homem que passa a vida realizando umas poucas operações simples... em geral se torna tão estúpido e ignorante quanto é possível tornar-se uma criatura humana” (apud Sennet, 2007, p. 41). O mote moderno de flexibilidade implica em desprender-se do próprio passado, ausência de apego, confiança para aceitar a fragmentação. O trabalho é cada vez menos legível, no sentido de permitir ao trabalhador o entendimento do que eles estão fazendo, e o trabalhador gradualmente se aliena. A fluidez, tão defendida no contexto empresarial, torna o indivíduo focado apenas em metas de curto prazo. Permanecer num estado contínuo de vulnerabilidade (arriscar-se constantemente) embota o espírito humano. E assim, o caráter humano é degradado pelo próprio sistema econômico no qual estamos inseridos.

Ramos (1981) corrobora com essas afirmações ao mencionar que “através de estratégias integracionistas, isto é, mediante estratégias que visam a integração de metas individuais e organizacionais, esforçam-se eles [os teóricos e praticantes de nossos dias] para transformar as organizações econômicas em sistemas sociais de tipo doméstico.” (p. 96) Apesar disso, “não questionam eles [os intervencionistas humanistas], explicitamente, o caráter geral desumanizador e enganoso da estrutura de emprego da sociedade centrada no mercado, que em si mesma não permite uma coerente prática do verdadeiro humanismo.” (p. 97)

Cabe então a reflexão sobre qual racionalidade nós (futuros) engenheiros devemos nos submeter e aplicar em nossas práticas. Será que existem organizações econômicas que fogem à racionalidade instrumental e aplicam a racionalidade substantiva? Será que conseguimos em nossa vida pessoal e profissional ‘mitigar os danos’ de um constante e ilimitado uso da racionalidade instrumental?

Acreditamos que as alternativas a essa lógica instrumental cada vez mais ganham força, genericamente chamadas de formas alternativas de produção. A economia solidária está nesse grupo e apresenta uma real possibilidade de reversão desse quadro. A lógica de funcionamento interno da forma cooperativista contém elementos que colocam o desenvolvimento como o objetivo humano como elemento central de sua prática, e não colateral.

Ao fazer esse tipo de reflexão, nos deparamos com um sentimento de inquietação face à nossa limitada atuação – até que ponto nós podemos modificar algo tão institucionalmente arraigado? Na camiseta de uma edição anterior do ENEDS, colocamos uma frase conhecida, atribuída a Mahatma Gandhi: “Você deve ser a mudança que você deseja ver no mundo”. O primeiro passo após essa reflexão é buscar o espaço de não subordinar mais nossa vida pessoal a conceitos com os quais não concordamos. Em seguida, somente então, poderemos atuar, não mais como engenheiros ‘instrumentais’, mas sim engenheiros substantivos, engenheiros que realmente tenham potencial de promover um verdadeiro e abrangente desenvolvimento social.

Espero que este texto tenha pelo menos colocado uma pequenina pulga atrás da orelha. Já seria uma grande coisa.

Bibliografia:
LIBÂNIO, J. B., 2001. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Ed. Loyola.
RAMOS, A.G., 1981. A Nova Ciência das Organizações. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas.
SENNET, R., 2007 A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record.

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